“A gente dizia que aprendia na faculdade de Direito a fazer petição, contrato e parecer, atualmente você precisa conhecer de legal design, jurimetria, entender de programação de bots e ter esse pensamento criativo e curioso sobre a sociedade do hoje e do amanhã”. É o que avalia Patricia Peck, sócia-fundadora da Peck Advogados, escritório especializado em Direito Digital. A especialista – que agora faz parte do corpo docente do recém-criado curso de Direito da ESPM – conversou com o Trendings sobre a transformação digital na área jurídica, os desafios do profissional do Direito na atualidade, os impactos da LGPD e traçou um panorama sobre o que acredita para o futuro da área. Confira a seguir:
O Direito acompanha a evolução socioeconômica da sociedade. Nos últimos 40 anos, temos o efeito da internet dentro da vida das pessoas e a transformação digital afetando todas as frentes de negócios. Você tem mudanças na saúde com a telemedicina, no transporte com os aplicativos, na própria educação com o ensino a distância, na parte financeira com o Pix. Estamos vivendo a sociedade smart da inteligência artificial: o carro inteligente, o celular inteligente, a TV inteligente, a casa inteligente, a smart city. Quais são os limites para usar todos esses dados e também os aspectos de segurança? Transparência, ética, segurança, tudo isso hoje é questionado e é provocado para que o profissional do Direito pense. Dá para dizer que toda rotina, a atividade jurídica está impactada pela transformação digital. A gente dizia que aprendia na faculdade de Direito a fazer petição, contrato e parecer, atualmente você precisa conhecer de legal design, jurimetria, entender de programação de bots e ter esse pensamento criativo e curioso sobre a sociedade do hoje e do amanhã.
“O Direito acompanha a evolução socioeconômica da sociedade”
É o Direito em que a inovação está no DNA. É o Direito de uma sociedade digital. Se pensarmos naquela visão de Schwab [Klaus Schwab, autor do livro A Quarta Revolução Industrial], de que a sociedade está 4.0, a economia 4.0, então traz o Direito 4.0 porque ele vai acompanhando a evolução socioeconômica. Se pensarmos na sociedade dos aplicativos, na uberização do trabalho, como o Direito vai refletir essa mudança de um trabalho hoje que está híbrido ou de qualquer lugar? Nós vamos pensando em como adequar essas relações de trabalho. Isso tem um efeito direto dentro das questões jurídicas.
A formação do profissional da área de Direito exige hard skills e soft skills. Dentro das hard skills estão o conhecimento específico de todas as disciplinas do Direito. Mas elas têm que estar atualizadas na realidade de uma sociedade digital. Quando você estuda o Direito Constitucional, por exemplo, tem que pensar sobre toda a temática da privacidade numa sociedade em que a gente captura tantos dados.
Em relação as soft skills, hoje, você não tem só como aprender o Direito, tem que aprender skills de design, comunicação, programação, saber trabalhar em times multidisciplinares, que tem pessoas com outras formações. Isso é demandado tanto em escritórios de advocacia quanto no departamento jurídico de uma empresa. Além disso, uma boa oratória e a redação sempre foram exigências para o advogado. Em uma sociedade mais audiovisual, também é importante nossa capacidade de imaginar como Direito vai se expressar em interfaces gráficas. Hoje também fazemos infográficos para um juiz conseguir entender um caso, não só um monte de parágrafos de texto.
“Hoje, você não tem só como aprender o Direito, tem que aprender skills de design, comunicação, programação, saber trabalhar em times multidisciplinares”
Sempre tivemos nas atividades jurídicas uma fama de esforços repetitivos. Muitas atividades eram delegadas para estagiários, assistentes ou mesmo advogados. Conforme está evoluindo o uso de inteligência artificial no ambiente jurídico, seja escritório, departamento jurídico ou no próprio judiciário, a profissão e a atividade estão mudando. Então, se aquele profissional não conseguir ser capacitado para outros tipos de entrega, corre risco de empregabilidade com toda certeza. O profissional tem que pensar o que agrega valor na atividade que está realizando e aquilo que a gente consegue ser insubstituível como humano. Você vai usar o bot para ajudar no dia a dia de trabalho, mas a capacidade de compreender, dar um diagnóstico, de atender bem aquele cliente ou cidadão, isso ainda vai ficar com os seres humanos.
A multidisciplinaridade traz uma coisa interessante, uma mistura de equipes juntando a inventividade e a capacidade de mexer com tecnologia do jovem, com a experiência da maturidade daqueles que já têm muitos anos de análise jurídica. Hoje em dia, você tem cientista de dados, engenheiro, designer, o profissional especializado em cibersegurança, proteção de dados. A nova legislação de proteção de dados também trouxe uma figura nova que é o encarregado de dados, o DPO.
Hoje já tem contratações que no processo de solicitação para escolher quem vai ser meu parceiro jurídico, querem não só equipe multidisciplinar, mas também diversidade na equipe. Não querem mais aquele tipo de escritório só de um tipo de formato, que só tem sócio homem e é todo mundo do mesmo jeito. Querem multidisciplinaridade e diversidade e isso é requisito de contratação de bancas jurídicas para muitos dos fornecedores, especialmente empresas com metas relacionadas a ESG.
“Hoje em dia, você tem [nos escritórios de advocacia] cientista de dados, engenheiro, designer, o profissional especializado em cibersegurança, proteção de dados”
A nova Lei de Proteção de Dados pessoais (LGPD), que é de 2018, trouxe uma nova visão para gente no Brasil e também uma onda de oportunidades que acredito que vamos surfar por muitos anos. Primeiro porque estamos vivendo o que chamaríamos de digital rights, que são os novos direitos de um cidadão digital. Como faço com que um indivíduo tenha garantido liberdade de expressão, privacidade, segurança, acesso à informação, acesso à internet, que desde a época do marco civil da internet foi colocado como sendo um direito fundamental? Você tem gente sendo contratada no setor público e no privado por estar com skills e conhecimento maior sobre proteção de dados pessoais. Temos um trabalho muito interessante chamado pelo princípio de privacy by design, que qualquer produtinho, ainda mais em termos de IoT, tem que sair de fábrica já pensando em privacidade e segurança.
“A LGPD trouxe uma onda de oportunidades que acredito que vamos surfar por muitos anos”
Pensando Direito para frente, vamos debater mais a questão de como tratar o contexto de metaversos. Como protejo marcas nesses espaços digitais? E os direitos autorais? Como lidar com crimes? Como termos proteções patrimoniais? Será que a gente precisaria ter um tribunal internacional para causas dos assuntos de direito digital? Se a gente não abraçar com uma visão mais internacional e globalizada, vamos ter muitos desafios. Acho que o Direito também vai ficar com essa abordagem de robotizar as regras dos direitos, botar bots polícia, bots juízes, bots advogados. Vamos botá-los nos metaversos e vamos internacionalizar. Esse é o Direito que acho que acontece nos próximos 30 anos.
Meu período de faculdade foi de 1994 a 1998. Eu já sentia uma carência de algumas temáticas. Por exemplo, achava que a gente tinha que ter aula de técnica legislativa, do como fazer leis, e que tinha que aprender mais sobre questões de perícia digital. Passados todos esses anos, a grade ainda tem essas carências. Você vai fazer termos de uso, política de privacidade, mexer com o cliente do ecommerce, e de repente não sabe nem como funciona aquilo ali em termos de programação. Os estudos de caso que a gente leva para a faculdade em todas as matérias têm que estar dentro daquela época. Em uma sociedade digital, você não pode ter um professor que só fica apresentando casos de Tício e de Roma. Tudo bem que a gente aprenda Tício, Roma, porque temos que aprender os fundamentos do Direito. Mas no segundo ano da faculdade cadê o digital? Cadê a sociedade que está vivendo situações do NFT, da blockchain, do cripto? Você não pode não ter isso em estudos de caso. Acho que essa que é a grande lacuna hoje. A grade precisa sempre estar atualizada com o momento da época.
“Em uma sociedade digital, você não pode ter um professor que só fica apresentando casos de Tício e de Roma“
O curso da ESPM foi pensado com muito cuidado para montar uma grade detalhada e convidar professores que estejam atualizados com as temáticas novas do Direito. Você precisa sopesar, tem uma limitação de tempo em termos de grade do que é exigido pelo MEC, esse é o grande desafio, acho que a primeira conquista da ESPM foi trazer o Marcelo Crespo como coordenador do curso, porque tem a capacidade de enxergar o que precisa trazer das disciplinas mais tradiconais, o que é a formação base que todos temos que aprender. Os principios do Direito estão aí e a gente não vai mudar. Mas como faço a ponte entre os princípios do Direito, que a gente precisa aprender, e conectá-los com o que existe de ponta e mais atual e usar o que a ESPM tem de melhor que é justamente essa química de juntar o Direito com tecnologia, negócios, comunicação. As necessidades de visão multidisciplinar, de poder ter laboratório tecnológico e de poder ter essa experiência com um grupo de professores que tanto tem a bagagem histórica da experiência do Direito tradicional como também tem a visão do pra frente, para onde vamos. Acho que isso que fica de diferencial.